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quarta-feira, 23 de março de 2011

O Pacto Maldito*

O Diabo

Belzebu, Satanaz, Lúcifer, o Danado,
O Anjo descaído, o Diabo simplesmente,
conforme te agrada, está na tua frente,
e quer falar contigo, austero tonsurado.

Tu conheces de cor a minha negra historia,
E sabes como fui do céu arremessado,
Quando ergui contra Deus meu punho rebelado
Supondo conquistar os louros da vitória;

Tu sabes que tentei os rudes cenobitas,
Indo mesmo ao deserto, à sua solidão,
Enchê-lo de tortura e medo, e aflição,
Com minhas invenções astutas e malditas,

E fui, na Idade Média, um rei em todo o mundo,
Quando a fome e a lepra, esse “fogo sagrado”,
Que a terra viu surgir no ano amaldiçoado,
Geravam o terror, o pânico profundo,

Quando à luz do luar, pelas encruzilhadas,
Em noites de Sabbath, vinham as feiticeiras,
Que iam depois morrer na chama das fogueiras,
Pedir o meu conselho, em vassouras montadas,

De gorro carmezim, com penas enfeitado,
Eu lhe vinha aparecer, ao trágico clarão
No seio da floresta, ao trágico clarão
Das tochas a arder, sobre um trono sentado...

E enquanto no silêncio austero dos conventos,
Nas celas glaciais, brancas e desoladas,
Erguiam para o Cristo as faces torturadas
Os monges a tremer, tristes e macilentos;

Enquanto sob a neve, esplêndida e sombra,
Das vastas catedrais, os aterrados crentes,
Rojavam-se no chão, juntando as mãos trementes;
- tonto de sonho e luz, de amor e de alegria,

Eu andava pela terra – eterno revoltado –
Insensível e forte, a rir, sonoramente,
Lançando em toda a parte, à luz do sol ardente,
A semente bendita e doce do pecado!

Ao fúnebre terror dos vossos cantochões,
Que enchiam de amargura as almas timoratas,
Eu opunha – jovial – as doces serenatas,
Em noites de luar, sob ogivais balcões.

O cheiro do incenso – o místico perfume,
Fazia-o esquecer aos tristes namorados,
Dando-lhe a aspirar os cravos avinhados,
Que lembram corações sangrando de ciúmes.

Eu era assim, o Amor, a Força, a Rebeldia,
E merecia ser, portanto, excomungado,
Mas acima de tudo, o meu maior pecado
Era opor a Verdade à vossa Hipocrisia.

Exorcismo, latins, água-benta, polés,
Nada o clero me poupou para me aniquilar!
E pretendo expor-me ao riso tolo, alvar,
Pintava-me cornudo e de caprinos pés...

Eu não morria nunca! E quando a Renascença
Trouxe um novo esplendor à terra entristecida,
Os artistas geniais, de fama mais subida,
Beberam no meu riso uma alegria imensa!

Mais tarde, em plena França, em das agitados,
Conversei com Voltaire, andei com Mirabeau;
Vinha-me procurar o célebre Rousseau,
E vi cair por terra os reis e os potentados!

Vai cumprindo o discurso e não estás satisfeito.
Devo, pois, concluir, senão eu poderia
Discorrer toda a noite, até nascer o dia,
Se fosse a enumerar tudo o que tenho feito...

O inferno, há muito tempo é casa abandonada,
Onde não desço mais, cujo calor me aterra.
Prefiro, amigo meu, andar por sobre a terra,
Podendo contemplar a abóbada estrelada!

Não mercadejo mais as almas corrompidas
E não vou procurar – porque me sinto exausto,
Ao fundo de uma cela o velho doutor Fausto,
O torpe sedutor das castas Margaridas...

Nada disso, meu caro... Há um século pra cá,
- falo-te francamente, a mão na consciência –
Vivo entregue de tudo às artes e à ciência,
Leio Darwin e Haekel, Victor Hugo e Zola!

Adoro as capitais, a vida tumultuosa,
Em que se luta e sonha, e se odeia e se ama,
E em que anda pelo ar e até na própria lama
A febre de viver, quente e vertiginosa!

O homem sem terror, tornando livre e forte,
Tendo um culto na terra, o culto da beleza,
Encantado a sonhar, amando a Natureza,
E num sonho de luz penetrando na morte...

Assim o quero ver, em face do Infinito.
E vós que reduzir a um ser mesquinho, informe,
Porque vos sou hostil, tendes-me um ódio enorme
E chamais-me o tinhoso e o maldito!

E lançai sobre mim, suprema vilania!
Os sentimentos mais do vosso coração,
Julgando que ainda hoje a vossa excomunhão
Causa o fundo terror que outrora produzia...

E tentais conservar as bárbaras ficções
Das caldeiras de pez, do prêmio e do castigo,
Expondo ao olhar do crente aquele Diabo antigo,
Que serviu de espantalho para tantas gerações!

Ah! Contanto que o Crente escravizado reze,
Que vos dê o seu sangue e vos dê o seu pão,
Tudo pode fazer, que há de encontrar perdão...
Assim o ensinas tu, na tua diocese.

Mas, ai! Se ele quiser mostrar-se revoltado,
Se da mão que o prime, ele se cansa, ao cabo!
Apelais para mim e invocando o Diabo,
Falais logo no Mal, na Morte e no Pecado!

Eu não tolero mais um tal procedimento.
Deixam-me agora em paz; já basta de suplício.
Façam vocês render esse sagrado oficio
De vender, a retalho, o vasto firmamento;

Seja cada vigário um nédio Sancho Pança,
Torne-se cada templo um rendoso balcão,
Onde, ao cheiro do incenso, ao som do cantochão,
Se venda, a quem quiser, a bem-aventurança;

Isso tudo esta bem e dá goso às beatas...
Até que um certo dia a voz indignada
Da consciência humana, enfim emancipada,
Voz obrigue a cavar e a plantar batatas!

Mas deixam-me sucegado... atenta neste aviso:
Não te metas comigo e eu nada te farei.
És o Bispo, eu o Diabo... Eu cá nunca tretei
De vos ir perturbar no vosso paraíso.

O que agora te fiz, é uma amostra apenas.
Goza a vida a fartar... abandona os rigores.
Há lá nada melhor que os olhos pecadores
Das loiras idéias, das cálidas morenas!

E enquanto vós pregais as mentiras divinas,
E andais a saciar vossa imensa cobiça,
Eu ando a propagar o verbo da Justiça,
Na ânsia e no rumor das vastas oficinas!

Vós dais o Paraíso e eu quero – a Liberdade.
Em vez da vida eterna, a vida lá na altura,
Eu quero sobre a terra a paz e a aventura,
Como frutos de luz de Amor e da Verdade.

E o Diabo olhou o bispo, a rir, irreverente,
Sentindo-se o mais forte e sempre o vencedor...
E eis o que então disse o servo do Senhor
Ao demo que Eli estava, altivo, impertinente,

O Bispo

“Confesso: tens razão. Nós temos abusado
Das velhas invenções dos vigários de cristo.
Exploramos ainda o original pecado,
E mostramos um Deus que tem um olhar sinistro.

És tudo para nós; se nos fechas o inferno,
Não podemos vender as nossas orações.
É com medo de ti, do sofrimento eterno,
Que o crente vai largando, a custo, alguns tostões.

Não seremos sem ti, confesso, quase nada.
A água-benta não rende; a missa não produz,
O nosso latinório é drogo avariada,
E está muito explorado o corpo de Jesus!

Prescindimos de ti? Sem Diabo quem nos quer?
Entendamo-nos, pois, e seja de uma vez!
Il y des accommodements avec l’enfe,
Segundo ensina alguém, em ótimo francês.

Embora eu te fulmine, em gestos furibundos,
Eu serei teu amigo e tu me estimarás;
Bem unidos os dois – eis-nos donos do mundo,
E verás como sou um ótimo rapaz.

O que eu quero é viver contente e regalado.
Se o outro mundo é bom, acho a esse excelente.
Essa historia do inferno e o medo do pecado,
Não são cá para mim; servem só para o crente!

A diocesse é nossa: a sorte nos congraça.
Tudo nos vai unir. “Aperta a minha mão...”

Nesse instante, batia na vidraça
O radioso e límpido clarão
D’aurora a despontar.
E toda branca, toda envolta em luz,
Na janela que abriu, de par em par,
Mais doce do que os lírios ao luar,
Surge a visão serena de Jesus!


* Capitulo VI da obra de Antonio Gomes Da Silva, cujo o poema satírico "A Tentação do Bispo" de sua autoria, esse livrinho aproximadamente cem paginas, ainda hoje é uma beleza de ler e se constitui no mais contudente liberlo ja publicado entre nós contra o clericalismo e sua variada gama manifestações.


Extraído:
Livro: Os anarquistas no Rio Grande do Sul
Autor: João Batista Marçal
Pagina: 165 á 171
Ano: 1995

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